Tempos de Sumiço — um conto suburbano sobre festa junina e ausência

Leo de Moura
24 min readFeb 1, 2023

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Uma família suburbana parece ser as últimas pessoas restantes após um inexplicável desaparecimento em massa da população. Sobre os frágeis pilares da tradição, eles comemoram mais uma festa junina, caminhando cada um no seu próprio trajeto frente à perda, buscando na cultura e na repetição a segurança da vida ordinária como ela costumava ser.

CAPÍTULO UM

— E se a gente taca fogo? É dia de fazer fogueira mesmo.

— Teu avô que gostava de tacar fogo em lixo, uma porquice! Fedia a casa toda a queimado.

— É mó ruim, mas quem vai levar pro aterro? Não dá pra enterrar no asfalto.

— Ué, então bota lá fora e amanhã a gente vê o que faz.

— A Senhora falou isso ontem…

A contragosto, dei dois nós em cada sacola e as carreguei para fora, deixando a Vó tirando a pressão da panela do milho na cozinha.

— E volta pra pegar os talheres! — Ela gritou lá de dentro.

Lá fora, no quintal da frente, já podia ver por cima do muro que tinha uns 5 sacos pretos em volta do poste, e mais umas sacolas de mercado escorrendo um chorume radioativo qualquer. Mesmo com todo o tempo disponível que tínhamos, ainda não sabíamos o que fazer com o lixo acumulado. Se cai um temporal, é certo que alaga tudo.

Nossa casa nunca alagou, mas tem casas mais baixas na rua. Mas não importa muito também, porque ninguém mais mora nelas. Todo mundo sumiu, e só sobrou a gente.

Todo mundo mesmo, não tem padeiro, não tem gari e nem carteiro. Não tem a vizinha da frente que colocava brega-funk todo dia nas alturas, e não tem meus amigos e nem os amigos da minha família. Sobrou só esse pessoal aqui de casa, no subúrbio do Rio, de rostos nem muito bonitos e nem muito feios, gente que passa uns perrengues, mas nunca passou fome. Gente que talvez nunca tenha esperado por dias como esses; e nem eu.

Mas era dia de São Pedro, e a Vó nunca havia deixado de comemorar, nem um ano sequer.

— Deixa aí mesmo — o Tio Garoto falou, debruçado no muro, enquanto eu tirava os sacos do meio-fio e organizava na base do poste.

— Mas se chover pode entupir o bueiro.

— E daí?

— Vai alagar as casas baixas…

— Hm, é verdade — ele acenou com a cabeça sacudindo a mão.

A verdade é que, se alagasse a rua, poderia entrar nas casas que ele andava saqueando. Mas ninguém falava disso, acho que virou um tabu. A Vó sempre perguntava onde ele arranjou não só a comida, mas papel higiênico, pasta de dente e todas as coisas básicas do dia-a-dia. Ele dá qualquer explicação e ela finge que não sabe de nada. Imagino que para ela deva ser muito difícil pensar em chegar nessa altura da vida e ter que “roubar” para sobreviver.

O mais engraçado é que o Tio Garoto só está pegando comida das casas dos vizinhos que ele não conhecia ou que não gostava. Mesmo sozinho ele agia como se alguém estivesse vigiando. Quem sabe a própria consciência.

Antes de entrar, o Tio pediu para eu ajudar ele com as bandeirinhas.

— Lembra quando o Tio Diana caiu da escada tentando pendurar as bandeirinhas na festa do ano passado? — Perguntei rindo.

— Não queria, mas lembro sim.

— Ele caiu, levantou todo ralado falando “tô bem, tô bem” e subiu de novo.

— Sem-noção — respondeu ele sério.

— Eu lembro que ele tava meio mal antes de sair de casa.

— É, um dia aí ele falou que tava se sentindo sozinho, pegou o primeiro vira-lata magrelo que achou revirando o lixo e chamou de Teco.

— Tico e Teco?

— Não. Era de tanto teco que ele dava todo dia. O cachorro ficava chapado de tabela.

— Ah tá — soltei uma risadinha.

— Mas aí ele fez aquela merda toda e foi embora, disse que não aguentava mais e meteu o pé. Tua mãe chorava só de falarem no nome dele.

— É, eu sei…

Mas eu preferiria que ele não tivesse mencionado a Mãe.

Queria poder falar com essa naturalidade que ele fala. Parece que tudo o que tá acontecendo não estava afetando ele, e ele só faz o que tem que fazer. Não sei como ele faz para falar da própria irmã assim, sem sentir nada, sem ficar triste. A Mãe foi daquelas pessoas que deram o azar de não estarem dentro dessa casa na manhã do sumiço. Parece que tem alguma coisa a ver com nossa posição geográfica, como se estivéssemos dentro de uma bolha dimensional.

Ou talvez não foi azar dela. Talvez deu foi sorte…

— É foda que é meu irmão, né, mas é um babacão… Ele arrumou briga com todo mundo. Só com você mesmo que ele não arrumou problema. Eu tinha até medo de tu ficar igual ele — o Tio falava com os punhos cerrados.

— Ele era engraçado — falei enquanto dava um nó no barbante de bandeirinhas — , só que às vezes eu não entendia as piadas dele. Nem sabia quando era piada, na verdade.

— Engraçado ele era, não vou mentir não — ele respirou fundo — , mas tem coisa que não dá pra perdoar.

— E onde você acha que ele tá agora?

— Sei lá, mas se não morreu antes, deve tá no mesmo lugar pra onde todo o resto foi, ué. Mas se ninguém voltou é porque deve estar muito bom — ele deu um risinho debochado.

Eu já sabia que a chance de o Tio Garoto me dar qualquer resposta confortante era de uma em cem mil. Mas nessa situação, assumo que esperei por um momento um milagre probabilístico. Deve ser “esperança”, o nome.

A verdade é que eu queria encontrar alguém com uma resposta, alguém que tivesse o controle ou ao menos entendesse a lógica do que aconteceu. Mesmo no dia do sumiço, demos falta da buzina do padeiro de manhã, comemos pão dormido mesmo. Televisão fora do ar e nenhuma alma viva na rua.

Só na hora do almoço alguém foi brilhante e tocou no assunto, e todos assumimos que algo não estava bem. E no dia seguinte já não tínhamos mais luz. E depois de várias discussões consecutivas com o Tio Garoto tentando relacionar aquilo com todas as teorias conspiracionistas que ele conhecia e a Vó citando várias passagens do Apocalipse de João, todo mundo meio que se fechou na sua própria verdade.

Mas sempre parece que no fim, qualquer um deles sabe tão pouco quanto eu. Acho que isso também é crescer.

— Eu vou pegar as coisas — entrei em casa e fui em direção à cozinha.

Mas fui impedido.

Corredor estreito. Só passa um.

A Vó saiu da cozinha com um copo d’água nas mãos, ela parou no corredor, em frente ao oratório e ofereceu ao santo. Orou, estendeu as mãos e recebeu a Graça. Mas sete velas acesas derretidas levariam às cinzas a pilha de santinhos de papel e os panfletos das Testemunhas de Jeová. Tudo numa lambida só. É bom que tenha um copo com água.

No altar já não tinha espaço para tantos objetos.

Sete velas, sete santos.

Um dia alguém descobriria que foi ela quem derrubou os muros entre o céu e a Terra. Foi ela, a Jacó do novo milênio, quem subiu e desceu as escadas por onde passavam os anjos do Senhor, e como quem une as duas pontas de um arco-íris, romperia a fronteira entre os assuntos de Deus e dos homens, fechando tudo em círculo, sem começo e sem fim.

Ela sacralizaria o que era profano, e sem vacilar, tudo passaria a ser sacro, e se tudo é sacro, tudo é também profano.

A matriarca bateu duas palmas como se acordasse de um transe.

— Que rapagão mais chique no urtimo — ela ajeitou o girassol no bolso da minha camisa.

— Vó, a água!

Corri para a cozinha para fechar a torneira.

— Ué, tem que botar de molho! Não é você que vai ariar isso tudo depois.

— A Senhora não pode fazer isso. Já te falei. A gente tá tendo que buscar água cada vez mais longe…

— Calma, meu filho, que tem muita água no mundo. O Senhor proverá.

Fechei o registro tentando esconder minha impaciência, peguei os talheres individuais e os de servir na gaveta e os levei para fora.

O fato de estarmos no centro suburbano de uma capital, torna a manutenção da vida possível. Mas até quando, eu não sabia.

Todo dia o Tio Garoto sai, dá uma volta pelo bairro, às vezes vou com ele. Foi ele quem fez todas as gambiarras para parecer que a vida corre “normal”. Ele sempre traz uma novidade. Não que encontrou alguém ou alguma pista do que aconteceu, mas sempre acha alguma coisa legal, uma comida enlatada cara, celulares, bilhetes… O quintal dos fundos já está cheio de tralha.

Já a parte de falar dos mesmos assuntos e fazer as mesmas coisas todos os dias fica a cargo da Vó. Como ninguém, gerencia a perfeita ilusão do normal.

— Sua esposa tá bestinha!

— Hm? — O Tio Garoto murmurou sem olhar para a mãe.

— Fui lá dentro perguntar o que ela ia beber e pediu cinuedo — disse a matriarca com ar de desdém.

— Quê?

Cinaeto, sei lá, falei que aqui não tem essas bebidas chiques não. Que hoje é Coca-cola, quentão, guaraná…

— Não quis beber nada? — Ele perguntou enquanto desgrudava um pedaço de bom-bocado do fundo do tabuleiro com a faca.

— Falou que a Coca servia mesmo.

— Depois vou lá falar com ela.

— Você sabe o que que é isso né? Sabe por que ela tá assim, não sabe?

— Mãe, não começa — ele largou a faca, desistiu, pegou duas paçocas e evadiu.

— Eu tô falado isso pro seu bem, porque a sobrinha da Noemi da casa verde ficou assim que nem ela, e foi só le…

BAM!

O que ocorreu fez os corações pularem, acelerando num ritmo frenético, algo que silenciou todas as bocas e arregalou todos os olhos que, mudos, gritavam pavor. Um estrondo de arrepiar a nuca, e vinha da casa onde até dias atrás, morava a Dona Noemi, nossa vizinha.

CAPÍTULO DOIS

O som de como que uma torre de panelas empilhadas houvesse sido golpeada na base, e todas as panelas despencassem, uma sobre a outra, como peças de xadrez que se atropelam ao bater com o joelho sob o tabuleiro, deflagrando todo o caos do acaso e declarando a morte das regras do jogo até então estabelecidas. O que é mais assustador? Saber que está sozinho ou saber que não está?

— Foi um gato — disse a Vó de sobressalto, levando a mão ao peito — , certeza que foi!

Antes que eu pudesse perceber, o Tio Garoto já tinha pego uma vassoura com a piaçava desgrenhada e empunhado como um porrete.

— Bota a sua avó pra dentro!

— Não vai me botar pra dentro merda nenhuma! Não sou inválida não.

— Eu vou lá ver — ele disse ignorando os protestos da própria mãe.

— E você também não vai pra lugar nenhum! Fica aqui. Não deve ser nada — disse a Vó enquanto o Tio Garoto se debruçava no muro para olhar a fachada da casa vizinha.

— Então, porra! Se não é nada, não tem problema eu ir lá olhar.

— Deve ser os gatos — insistiu a Vó.

— Olha, mãe — ele respirou fundo — , até quando a Senhora vai continuar fingindo que tá tudo bem? Já pensou se alguém aqui fica doente? Não vai ter médico, não vai ter hospital e nem comida. E se a gente nunca acordar desse inferno? Já pensou?!

— Olha lá! — A Vó fez o sinal da cruz.

— Eu tinha planos pra minha vida e essa merda toda aconteceu!

— Ah, bonito, e você acha que eu também não tinha?

— Que planos? Olha a idade da Senhora — ele retrucou com um riso soberbo.

A Vó emudeceu, deu as costas, passou por mim, entrou e bateu a porta com força. Não sei dizer o que ela estava sentindo, mas era forte. Bateu a porta para não ter que bater na cara de alguém.

Ela sempre foi uma mulher muito reclusa, tradicional, dona-de-casa mesmo, vivia para isso. Quando o Vô morreu, todo mundo achou que ela estaria acabada, que não ia aguentar. Tinham medo que ele se fosse antes dela, porque o Vô amava muitas coisas, muitas mesmo. Se a Vó fosse antes, ele ainda teria muito o que amar. Mas a Vó só amava a ele.

Quando ele se foi, ela chorou muito nos primeiros dias, mas surpreendeu todo mundo, parecia outra pessoa. Eu mesmo já não a conhecia. Ela se apegou muito mais à religião, mas ao modo dela mesmo, não seguia convenções. Virou uma chef de mão cheia, e inventava algo novo todo dia.

Ela não cozinhava mais só os pratos que o Vô gostava. Ela passou a fazer os que ela gostava também.

— Não é melhor a gente esperar? — Perguntei.

— A gente vai esperar até seja-lá-quem-for aparecer aqui — e ele abaixou o tom de voz — e pegar a gente de surpresa? Agora já sabem que tamo aqui. Você tem mais medo de descobrir logo o que é ou de que armem pra gente quando a gente tiver dormindo?

— E se realmente não for nada? Tipo só um gato — murmurei sem saber qual das possibilidades me dava mais tristeza.

— Tch… — Tio Garoto parou por alguns segundos, deu meia-volta decidido e foi em direção ao muro para olhar a rua.

Antes do sumiço, o Tio Garoto gostava de assistir vídeo de sobrevivencialismo. Ele tinha vários livros velhos sobre isso que ele comprava em sebo. Às vezes ele vinha com essas coisas de guerra civil, sempre meio desesperado. Nos últimos dias pensei em me arrepender de não ter dado razão pra ele quando tudo estava normal, mas tive que escolher entre viver a minha vida sem pensar nessas coisas ou ficar noiado igual a ele.

— Eu vou com você — falei passando a mão pelas facas grandes de cortar o pão, na expectativa que ele negasse.

— Não! Se der merda ainda sobra você. Alguém tem que ficar aqui.

— Espera!

Fui até o quarto e peguei meu celular, que naqueles dias descobri ter serventia, mesmo sem sinal.

Peguei a escada velha de alumínio, apoiei no muro que dava para a casa da Dona Noemi e segurei para o Tio subir.

Ele subiu e esgueirou a cabeça por cima dos cacos de vidro coloridos cimentados no muro. Liguei a lanterna do celular e entreguei na mão dele.

— Tô vendo a cozinha…

— E aí? — Perguntei ansioso.

— Tem umas panelas no chão, acho que tavam no escorredor.

— Mas não tem ninguém? Nada estranho?

— Não — ele olhou apontando a lanterna para os fundos e para a direção da rua — , o basculante da cozinha tá meio aberto, mas não passa uma pessoa ali não. O portão da rua tá fechado, o da cozinha e do corredor também.

— E a porta da sala? Aquela da frente…

— Não sei, não dá pra ver daqui.

Ele desceu as escadas, abrimos o portão de casa sem fazer barulho e fomos até a rua. A rua, que parecia inofensiva nesses dias que seguiram após o dia do sumiço, agora tinha um aspecto aterrador, como se qualquer coisa pudesse saltar dos canteiros, ou como se qualquer entidade bizarra surgisse correndo em nossa direção pelo asfalto.

— Viu? — Ele falou olhando para a fachada da casa da Dona Noemi.

— É, tá fechado.

Voltamos para casa e dessa vez nos certificamos de que o nosso portão estivesse trancado.

Algo tinha morrido em mim, mas não sei dizer se foi o medo ou a esperança.

A chance de não ser só um gato deve ser, de novo, de uma em cem mil. Mas pensar que esse “um” existe já é aterrador o suficiente. E se fosse alguém mesmo? Eu sorriria ou correria?

Dei algumas voltas sem rumo e fitei a mesa por 5 segundos.

Passei a mão pelos talheres.

“Não a faca grandona de cortar pão, não estou tão paranoico assim. Não a de passar manteiga, porque seria o mesmo que nada. Uma pequena, de corte, das que usamos no almoço. Não sei mais como estou racionalizando isso tudo”, pensei colocando uma faca de aço fosco dentro do bolso.

Dei meia-volta e entrei.

— Toque toque — eu brinquei surgindo na porta entreaberta do quarto.

— Entra aí — convidou a Tia Tedinha da cama, embrulhada no cobertor, como uma montanha de roupa recém tirada da corda.

— Você não ouviu o barulho lá fora?

— Ouvi, tava vendo vocês aqui da janela.

— Ah tá…

— E aí?

— O que que você falou pra Vó que ela tava reclamando?

— Ah, besteira.

— Fala, ué — insisti.

— Não, deixa.

— Por que?

— Engraçado que às vezes eu pensava tipo, sabe esses filmes de apocalipse zumbi? Que tem alguma espécie de praga, desastre natural…

— Hm…

— E na minha cabeça eu imaginava algo como nos filmes. — Ela se ajeitou na cama. — Me imaginava indo nas lojas procurar mantimentos, sem muito tempo para pensar. Só com tempo para sobreviver. Mas na imaginação tem todo aquele glamour, sabe? Acho que a gente gosta tanto de imaginar essas coisas porque é nossa desculpa pra desistir de tudo e se preocupar só com o essencial.

— Tipo como se a gente só quisesse desistir das complicações da vida e obedecer só aos instintos?

— É, porque a gente não sabe direito se o que estamos fazendo é o certo. Se escolhemos a carreira certa, se casamos com a pessoa certa, se fomos ao lugar certo…

— Então se não tem mais nada, nosso único objetivo é sobreviver, né?

— Sim…

— Mas se não tem mais carreira, relacionamentos, não tem também civilização. Sobra o que, então?

— Barbárie.

A Tedinha é que sustentava o Tio Garoto. Ela não é minha tia de sangue, mas sempre considerei ela como uma irmã mais velha. Ela sempre trabalhou desde muito cedo, é publicitária e ganhava muito bem. Ela era meio viciada no trabalho, e acho que a relação de casal deles nem é das melhores também por causa disso. Não sei direito o que fez eles ficarem juntos por tanto tempo.

Depois do sumiço parece que ela perdeu tudo o que ela tinha, e não sei, mas parece que ela nunca se viu bem como chefe de família e nem como dona-de-casa.

— Por que a gente não vai lá pra fora? — Perguntei.

— Sei lá, não quero me estressar. Eu queria tá em qualquer festinha caída, com grave estourado, colando a raba no chão.

— Tu nunca foi de dançar e tá falando em colar a raba?

— Parece até que não me conhece! Não lembra do bailinho do bloco?

— Do dia do bombeiro?

— Fala baixo! Seu tio me mata se fica sabendo disso, hahahaha!

— Hahahahaha.

— Mas eu queria mesmo era acordar.

— Não tá acordada?

— Acordar disso aqui, sabe?

— Mas é um pesadelo em ritmo de quadrilha, né? Tá ouvindo? — Toquei a minha orelha e apontei o nariz para a janela — veneno, meu companheiro desata no cantador… — cantei baixinho levantando as sobrancelhas.

— Sabe — ela soltou um suspiro — , e se eu não tivesse vindo pra cá antes do sumiço? Talvez eu saberia pra onde todo mundo foi…

— Mas aí você não conseguiria voltar pra contar pra gente.

— É verdade…

— Tedinha, desde que tudo aconteceu e você quase passou a nem querer mais sair dessa cama, fiquei com medo de você fazer alguma besteira.

— Tipo o que?

— É que você não é o tipo de pessoa que faria mal pra alguém.

— Tem medo que eu faça alguma coisa a alguém?

— Não.

— Então?

— Justamente, faria então a você mesma.

— Ah, não — ela sorriu — , por enquanto não.

— Que bom.

— Imagina como o bebê iria ficar?!

— Que bebê?

— Teu tio.

— Hahahaha

— Quer paçoca?

Ela deu nos ombros.

— Vou pegar pra você — disse a ela saindo do quarto.

Talvez o nosso medo não seja exatamente de morrer de fome ou de alguma doença sem ter atendimento médico. O que dá medo mesmo também não é ficar sozinho, é sentir-se sozinho. São as pessoas que nos rodeiam que fazem nosso mundo. Perder esse mundo seria o fim. Parece que não fomos feitos para isso.

Talvez seja a nossa redenção. Talvez seja o universo esfregando tudo na nossa cara. Talvez nem seja sobre a gente e só demos o azar de estar aqui no tempo e lugar errado.

Essa festa é o fio de seda que sustenta toda essa estrutura complexa e atrofiada que são as relações. É o nosso quarto do pânico, nossa tentativa de abraçar com força os problemas que ainda conhecemos e afastar todos os outros que nunca lidamos.

É o nosso último oásis.

Quando saí, a Vó estava num canto, de chapéu de palha na cabeça, tomando caldo verde do lado da caixinha de som ligada na extensão improvisada que corria por três quadras até o gerador de energia do hospital.

No outro lado, o Tio Garoto comia uma espiga de milho cozida, parecendo tenso, olhando para o topo dos muros e para o telhado a todo o tempo.

— Viu as Três Marias? — A Vó perguntou quando me servi de um pouco de canjica na mesa.

— É, estão bonitas.

De verdade, estavam. Possivelmente nossa casa era o único ponto de luz num raio de muitos e muitos quilômetros. De todos os céus que já vi, somente o céu da roça se parecia com isso.

BAM! BAM! BAM!

Três batidas no portão.

A horripilante sensação de incerteza.

Os olhares se cruzam tensos.

Os dois segundos onde todos se contêm para não esboçar qualquer reação, e imediatamente começam a contar mentalmente para verificar se todos os membros da família estavam ali, antes de levantar qualquer possibilidade da chegada de uma quinta pessoa. Para o meu terror, tirando a Tia que estava lá dentro, estavam todos ali, no quintal da frente.

CAPÍTULO TRÊS

— Abre aí — ecoou uma voz masculina mansa da rua antes que qualquer um pudesse tomar uma ação.

— Quem é?! — O Tio Garoto perguntou em defensiva.

— Sou eu, mano.

Imediatamente, o Tio Garoto e a Vó correram para o muro para ter certeza do que ouviram. Não precisei seguir o grupo quando vi meu tio olhar em direção à calçada e dar meia-volta com ar de desgosto e a Vó descendo as escadas apressada para abrir o portão. Já não havia razão para eu segurar a faca que guardei no bolso com tanta força, em vez disso, seria melhor um fone de ouvido potente para não precisar ouvir tudo o que pensei que viria a seguir.

O Tio Diana, que era como eu chamava quando criança por não conseguir pronunciar Indiana Jones, seu apelido, sempre foi conhecido como um contador de histórias de pouca credibilidade, mas eu confiava nele. Era um homem que já viajou muito e fez muitas coisas na vida, não era alguém que sabia pouco.

— Onde você tava? — Perguntou a Vó irritada ao ficar cara-a-cara com seu rebento.

— A pergunta não é essa — interviu o Tio Garoto — , é o que ele está fazendo aqui.

Em algum grau, eu me identifiquei com o visível desconforto do Tio Diana em retornar à família. Pude ver a tristeza no olhar dele. Talvez por medo, vergonha, ou simplesmente por saber que estar de volta entre pessoas que ele nunca compreendeu e nunca o compreenderam também seria a única opção nesse caso.

“E agora?”, eu perguntaria a ele. Para onde olhar, jantando em mesas redondas, quando as telas não acendem mais?

Para qual desses rostos ao mesmo tempo tão repetitivos e tão estranhos pedir abrigo?

Tentar uma vez mais e ser o último a sair ou ser o primeiro a levantar e deixar apodrecer o os cordões já debilitados que sustentam as relações?

Talvez não seja nada disso, e eu só anseie por me identificar com alguém. Mas eu não me vejo em mais ninguém.

Quero acreditar que para alguns de nós, o convívio forçado fortaleceu laços que estavam negligenciados, reaproximando quem era afim. Porque para todos os outros, foi o fardo de fatalmente descobrir que sem toda aquela “fazeção”, idas ao mercado e aparelhos de televisão, nada mais havia ali senão a insuportável presença do outro. E, surpresa, a insuportável presença de si.

— Espero que esteja arrependido! — A Vó vociferou abalada.

— Dane-se se ele tá arrependido, nem era pra ele tá aqui! — O Tio Garoto interpelou vermelho de raiva.

— Cale esta boca que tu não manda em nada nessa casa!

— A Senhora vai defender ele?!

— Carreguei vocês por nove meses!

O Tio Garoto segurou o irmão pela gola da camisa.

— Me larga! Tá loucão? — Ele resistiu.

PÁ!

Um tapa certeiro da Vó ecoou pelos pulmões de Caim, que largou Abel no chão.

— A Senhora tá maluca?!

No meio da cacofonia generalizada já não pude pensar em mais nada, senão na minha própria ira. A ira por não me permitir expressar toda a angústia acumulada pela perda de uma mãe que sumiu inexplicavelmente como todo mundo lá fora, tão banal, sem morte, sem corpo, sem velório, só sumiu. De forma tão ordinária quanto a própria palavra quando se desconecta do seu significado.

A ira de não poder gritar alto o suficiente, para que parem de olhar um momento para as suas próprias tragédias e olhem para o minha.

E, descendo as escadas em direção à rua, com olhos vermelhos, empiricamente constatei que, assim como a minha avó: bati o portão para não bater em alguém.

Corri.

Corri na tentativa de consumir toda a adrenalina que pulsava no meu corpo.

Dei a volta no quarteirão e voltei ao mesmo lugar.

E andei uns 50 passos para longe do meu endereço.

Sentei-me no meio do asfalto, em cima de um quebra-molas, uma pequena subversão, a dez metros da placa de “rua de lazer”.

Foi como estar caminhando numa savana de leões atordoados. A excitação é justamente porque eu ocupava um espaço que era hostil, que não se podia simplesmente parar e se sentar. Agora todos os carros estão adormecidos, e talvez nunca acordarão de novo, não voltarão a ocupar essas ruas.

No meu lado esquerdo, paredes caiadas e, na fachada, um São José de azulejos, como na música da Amália, aquela fadista. Do lado direito também, só que com um São Jorge, dois andares e um terraço inconsistente.

Arquitetura neocolonial do terceiro mundo, branco, salmão e verde-água.

A flora local de fios de cobre cruzando os muros, por vezes saqueada e revendida, agora intacta. Casas que se parecem muito com a minha, mas nenhuma delas ocupada. Nenhum cano de descarga fazendo estardalhaço, nenhum pipeiro, nenhuma pipa, nenhum caralho, nenhum viado. Mas também nenhum boa noite, nenhum rosto familiar chegando do trabalho.

De olhos atentos, só os pombos, gatos e namoradeiras em eterna espera.

Por trás das minhas costas, ouvi passos atrapalhados.

A silhueta de uma mulher de vestido e chapéu na mão descendo a rua. Aparentemente desconfortável em botas de couro.

— Saiu da cama? — Perguntei à Tia.

— Valeu a pena, o céu tá bonito — respondeu ela, agora com roupas coloridas e fitas no cabelo.

— Tá tudo bem lá?

— Terminou em choro, nenhum ferido. Então, sim.

— Hm…

— Tem fogo?

— Vai fumar?

— Não. Olha ali — ela apontou para um amontoado de restos secos de poda no meio-fio.

— Ah, não, não tenho…

— Sabia que pular as fogueiras era um costume antigo, bem mais antigo que as festas juninas?

— Onde você viu isso?

— Teve um trabalho que a gente fez pra um centro cultural. Na reunião um historiador falou que os antigos celtas faziam isso na Europa. As mulheres pulavam a fogueira para ficarem mais férteis e nascerem mais bebês.

— Faz sentido. Nem devia existir tanta gente assim naquela época.

— Mas já não se fazem mais muitas fogueiras nas festas juninas por aqui — ela gesticulou indignada.

— É verdade.

— A cidade apertou, todo mês levantam uma parede nova, os quintais estão encolhendo, não tem espaço pra fazer fogueira mais.

— Vai ver que não querem que nasçam mais bebês.

— Quê?

— As fogueiras e tal…

Um homem, que se aproximou com os passos de um gato, surge.

— Onde você tava? — Perguntei.

— Lá em casa — respondeu o Tio Diana.

— Digo durante esses dias.

— Então, eu tava escondido.

— Onde?

— Em casa, no telhado.

— No sótão?

— É.

— Ah…

— A rua era perigosa.

— Cunhado — ela olhou para ele sem se levantar — , eu te perdoo.

O Tio Diana, de longe, dá um sorriso sem graça e acena com a cabeça. Ele vai até os galhos amontoados na rua, saca do bolso um isqueiro e ateia fogo queimando um cartão de visita velho tirado da carteira.

Ficamos em silêncio por alguns longos minutos, contemplando a ascensão das chamas, até chegar à altura de um adulto.

— E se fosse uma simulação? — Questionou a Tia.

— Simulação que nem num jogo? Tipo Matrix? — Perguntei.

— Não. Digo simulação de fingir o que não é. Mas a gente finge tanto que passa a ser real. É como se fosse a mesma coisa comemorar o dia de São Pedro em qualquer noite do ano que faz frio, sozinho.

— Eu só acreditaria nesse dia se ele se repetisse muitas vezes, na mesma data — manifestou o Tio Diana.

— Exato! Então vamos supor que eu invente o dia da tartaruga — ela continuou.

— Mas esse dia já existe — ele falou enquanto brincava com pedrinhas britadas no asfalto.

— Tudo bem, mas vamos fingir que não existe e eu crio ele no dia 23 de maio.

— Mas é nesse dia mesmo.

— Tá zoando né? — Ela olha para ele surpresa.

— Não.

— Coincidência improvável essa.

— Não é coincidência. Já tava na sua cabeça antes de você falar. Só não sabia.

— Mas eu nunca soube que tinha um dia da tartaruga.

— Você só não lembra — ele levantou as sobrancelhas.

— Mas isso é muito específico. Como você sabe que dia 23 de maio é dia da tartaruga?

— Já fui voluntário do TAMAR.

— Não lembrava disso. A gente já se conhecia?

— Claro, foi na época que você e o Garoto começaram a namorar.

— Não lembro mesmo.

— Não é porque você esqueceu que a memória sumiu.

— Enfim, vamos supor então que eu invente o dia do vira-lata caramelo. Esse não existe né?

— Não sei, acho que não — deu nos ombros.

— Então se eu invento esse dia e convido toda a minha família a comemorar da mesma forma todos os anos, em algumas décadas isso vai virar uma tradição — prosseguiu a Tia. — Então isso passa a fazer parte da nossa história, e todas as próximas gerações crescem sabendo que em determinada data, esse evento vai acontecer. Não é só mais um evento festivo, era uma brincadeira repetida tantas vezes que virou parte de uma estrutura. Não podemos passar um ano sem essa festa…

— Então quantas vezes precisamos brincar de caipira até ser real?

— Eu não sei… — Ela se calou por um momento. — Aliás, cadê o seu cachorro?

— O Teco foi embora.

— Fugiu?

— Não sei. Foi embora que nem os outros, ué. Eu deixei ele na casa do Bartô no dia da briga. Fui buscar uns dias depois e o Bartô não tava lá, e nem ninguém da família dele, e nem o Teco. Aí vi que não tinha mais ninguém na rua também.

— Tá de sacanagem? E no caminho tu não tinha percebido isso?

— Não, tinha acabado de acordar.

— Então no dia da briga você não saiu do bairro? — Perguntei.

— Não. Eu tava dormindo naquela obra parada quase em frente ao Bartô. Fiz amizade com uns crackudos de lá, gente fina. Mas rolava de aparecer um taxista ameaçando eles de morte e tudo, porque parece que quebraram o farol do carro dele. Fiquei com medo de sobrar pra mim, meti o pé e voltei pra casa.

— Pro sótão?

— É.

— Então esse tempo que você sumiu você tava no sótão?

— Eu não sumi. Eu só não tava no mesmo lugar que vocês tavam.

— É que tecnicamente você ainda tava em casa.

— Sim, mas pra vocês eu fui embora.

— Mas os outros só sumiram mesmo.

— Sumir assim tipo “puff”? — Ele gesticulou com a mão como um ilusionista fazendo um truque.

— Claro.

— Você já viu alguma coisa sumir? Não digo sair do nosso campo visual, digo sumir mesmo.

— Acho que não — franzi a testa.

— No final alguém encontra, ou às vezes vira outra coisa. Mas sumir “sumir”, nunca vi também. Então você não pode provar que elas sumiram — argumentou o Tio Diana.

— E nem você pode provar que elas foram embora.

— Mas é muito mais provável que elas tenham ido embora por conta própria do que sumido, já pensou?

— É, mas mesmo assim… — Tedinha relutou.

A Tia parecia decepcionada como uma criança frustrada por uma expectativa que não se realizou. E de alguma forma, eu pude me relacionar com o que ela parecia sentir.

Na rua podíamos ouvir o miado triste de um gato que não tinha qualquer culpa por qualquer coisa, somente existia, assim como nós. Talvez sentisse o frio das noites de junho, talvez tivera acabado de se dar conta que não há mais ninguém, talvez fosse um dissidente solitário do bando.

— Sei lá, cunhada, acho que você só não quer pensar que as pessoas vão embora mesmo, e fica inventando história só pra não assumir isso.

— Mas Tio, parece que se a gente diz que foram embora é culpa da gente. Como se elas tivessem escolhido nos deixar — protestei indignado. — Chega a ser ofensivo!

Tedinha permaneceu em silêncio olhando para o nada.

— Às vezes é mesmo, ué. Mas às vezes elas vão embora mesmo porque querem ir. Não depende de você.

— Mas por que ir embora assim por conta própria? Tudo bem que elas não “sumiram”, mas acho que elas foram levadas embora por alguém ou alguma coisa.

— Eu aposto o real que não.

— Um real?

O Tio Diana sacudiu a cabeça em negativo e ainda brincando com pedrinhas, pegou um caco de tijolo e escreveu no chão “REAL”.

No horizonte de telhados coloniais e terraços sem reboco, um ponto de luz que ascendia ao céu, saia do meio das casas.

— É um OVNI?

— Pior, é um balão.

— Ganhei — disse o Tio.

Posfácio

Quis escrever uma narrativa que não falasse apenas sobre luto, mas também sobre o poder da linguagem na estruturação da realidade e as armadilhas semânticas que nos colocamos. Embora o desfecho seja determinante para a resposta da pergunta-chave nos momentos finais da realidade do conto, ele é indeterminado para a realidade subjetiva de quem lê. E o que fazer você, leitor ou leitora, com isso, já não está mais sob meu controle.

Na casa onde cresci temos o costume de nunca deixar a época de festas juninas passar em branco, pois é uma forma de manter viva uma celebração a qual minha bisavó estimava muito. E mesmo após décadas de sua partida, a figura da matriarca ordenadora que ela deixou na família ainda é muito presente.

A ideia para esse conto surgiu durante um episódio atípico em uma dessas festas, em 2013. Nossa família estava sem ânimo passando por dificuldades financeiras e fizemos algo mais simples que o de costume: preparamos três ou quatro pratos tradicionais e nos reunimos no quintal da frente sob o céu estrelado de junho, com a vista de uma rua praticamente deserta no frio “siberiano” de 18°C do Rio de Janeiro. Uma delicada melancolia compartilhada.

Sentado no mármore da escada da varanda, me virei para a minha prima e perguntei algo como “e se fossemos as únicas pessoas na cidade?”. E desde então, essa ideia persistiu martelando a minha cabeça pelos dias que se seguiram. No mesmo ano, ensaiei publicá-la no formato de visual novel, mas algumas inviabilidades me fizeram desistir para só então retomar o projeto anos depois, em 2020.

Coincidentemente ou não, o ano de 2020 foi marcado pela pandemia da Covid-19, quando o distanciamento social e a estranha imagem de ruas desertas se tornaram constantes. Embora a estrutura dessa narrativa já estivesse montada desde bem antes da pandemia, não nego que esse fator possa ter me influenciado na retomada do projeto.

Publicado originalmente como e-book em 2021 sob o título “Aos Tempos de Sumiço”. Versão para Medium editada em 2023.

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