Como comunicar uma ocupação?

Leo de Moura
5 min readJul 8, 2020

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E como consolidamos o que seria o primeiro manifesto formal da Ocupação Cultural Suburbana.

Grupo de mais de 20 pessoas posando para foto na calçada em frente à casa.
Gestão colaborativa reunida após mutirão de limpeza — outubro/2013.

Em 2013 iniciamos um projeto para transformar uma casa abandonada em um centro cultural no subúrbio do Rio de Janeiro, e um dos assuntos que mais inquietava o nosso sono era quanto a mensagem transmitida aos moradores sobre as nossas intenções com o projeto. Nesse quesito, acredito que um dos maiores suportes para consolidar o discurso que sustentaríamos por essa jornada foi contribuição do professor Pedro Henrique Gomes, o PH.

O manifesto

O PH participou da nossa formação no Ensino Médio lecionando Geografia e era muito querido pela nossa turma de meia dúzia de alunos. A aproximação dele ao projeto foi fundamental para alicerçar a nossa narrativa e ajudar a transpor em palavras o que nós mesmos às vezes não éramos capazes de explicar. O PH foi nessa iniciativa um facilitador, instrutor e mentor, e que não deixou de exercer seu ofício de professor sempre que marcava presença nos mutirões de limpeza, reuniões e eventos. E foi graças a ele que consolidamos o que seria o primeiro manifesto formal do Reunião da Sabedoria:

PROJETO SOCIOCULTURAL E AMBIENTAL — REUNIÃO DA SABEDORIA

Trata-se de uma iniciativa comunitária de caráter sociocultural e ambiental que visa atender as necessidades culturais da região, reforçar ações de prevenção e preservação ambiental, bem como de valorização da cidadania. Apesar de toda ação ser política, não temos ligação partidária, religiosa ou para fins comerciais.

A iniciativa é uma ação organizada por jovens moradores da região que buscam o direito pleno a cidade, ao lutar pela garantia dos direitos sociais ligados ao lazer, entretenimento, cultura, educação e meio ambiente. Somos jovens estudantes, trabalhadores, filhos, cidadãos que buscam a valorização e respeito da população suburbana e carioca.

O projeto tem por objetivo revitalizar/refuncionalizar a casa, abandonada há, pelo menos, 30 anos, em um espaço agradável e de uso público e comunitário. Até o presente momento, o imóvel era alvo de vandalismos, permanência de usuários de drogas, recinto de atividades criminosas e foco e desenvolvimento de doenças infecto-contagiosas, como dengue, leptospirose, e de vetores animais que disseminam doenças como ratos e caramujos.

Para o sucesso do projeto, precisamos de todo o apoio da população local no que diz respeito a busca por parceiros, na doação de recursos essenciais (de limpeza, construção e manutenção) e no financiamento financeiro para bancar certos serviços essenciais (abastecimento de água, energia, entre outros). O trabalho será grandioso, porém, o coração é grande, dedicado e motivado para enfrentar os diferentes desafios.

Close em pequena pilha de panfletos impressos com informações sobre o projeto dispostos sobre superfície lisa.
Panfletos do projeto que foram distribuídos pelo bairro.

Essa apresentação nortearia o nosso discurso, que precisaria ser conciso, e seria importante para expressar que havia unidade e que o grupo convergia para o mesmo objetivo. Ter propósitos claros e definidos não era somente importante para nós, mas para quem estava de fora perceber a seriedade na nossa ação. Sem a consonância de ideias que pudemos expressar para cada pessoa curiosa que se aproximava para entender o que era toda essa movimentação na casa, dificilmente teríamos recebido o suporte que recebemos.

Objetivos:

  • Promoção e apresentação musicais e teatrais — jovens artistas suburbanos
  • Oferecer e desenvolver atividades educacionais e culturais como cursos de teatro, dança e capacitação profissional.
  • Promover oficinas e palestras de visão crítica-reflexiva sobre temas pertinentes da nossa sociedade como sustentabilidade, cidadania, política, cultura, entre outros.
  • Promover e desenvolver atividades sobre sustentabilidade sócio-ambiental como hortas comunitários, agricultura orgânica, reciclagem, entre outros.
  • Criar e promover um espaço público de confraternização e discussão de ideias.
  • Incentivar a tomada de iniciativas para projetos sociais de caráter voluntário, militante, participativo, cooperativo e colaborativo.

Me alegro em saber que em nove meses de ocupação pudemos cumprir ao menos 4 itens dessa lista, sendo essa publicação a extensão de todos os itens que incluem o verbo “promover” e “incentivar”.

Segurança para falar quem somos antes que falem por nós

Assumo que a excessiva cautela a tudo que era relacionado à nossa apresentação como coletivo nos beneficiou com pontos positivos. De maneira alguma queríamos nos definir como algo que não éramos, ou convocar os vizinhos para algo que não existia. Mas, ao mesmo tempo, tínhamos pressa em tomar uma posição, pois o bairro inteiro já estava sabendo que algo acontecia na velha casa.

Grupo de colaboradores do projeto apoiam ferramentas no chão de terra. Rostos fora de quadro.
Os mutirões de limpeza sempre chamavam a atenção de quem passava nas proximidades.

E compreendo nosso sentimento de pisar em ovos naquele momento, pois não é todo dia que se ocupa um casarão abandonado — e obviamente não tínhamos experiência com nada parecido antes. Então, todo cuidado parecia pouco, pois além de tudo, éramos inseguros sobre muitas coisas.

Embora uma voz ativa de liderança seja importante às vezes, creio que um pouco de insegurança é igualmente saudável como contrapeso para as nossas decisões. Fora isso, também havia algo que nos parecia certo: é que independentemente das nossas decisões — às vezes irrevogáveis — demonstrarem ter sido boas ou não, iríamos arcar com as consequências. Evidentemente a sinergia do grupo foi fundamental para assumir a tutela dessas responsabilidades.

O fato que nosso movimento, mesmo que urbano, se aproximava da questão fundiária sempre foi um assunto para que pensássemos e debatêssemos muito na hora te tomar qualquer decisão a respeito da comunicação e da identidade do projeto. E me arrisco a dizer que além da roupagem apartidária e supostamente apolítica, o privilégio de raça e classe facilitou em muito a aderência da população ao nosso movimento. Mas me reservo no direito de não adentrar neste tema agora, pois isso renderia um texto — ou vários — exclusivamente para esse assunto.

Ao mestre, com carrinho-de-mão

Apesar de ruim no critério humorístico, estou seguro que este é um título simpático, pois recapitulando o projeto Reunião da Sabedoria, tenho a oportunidade de falar também de um dos aspectos que precedem essa iniciativa. Sem dúvida, é reconhecer a importância da nossa formação intelectual promovida pelos educadores que tivemos a oportunidade de conhecer.

Dois integrantes do coletivo interagem com grupo de três idosas. Avenida e comercial local fechado ao fundo.
PH (esquerda) e Igor (co-fundador do projeto) oferecem livros arrecadados aos moradores.

O PH foi um desses educadores dos quais sou muito grato de ter participado das aulas enquanto estudante. E nessas possibilidades que ainda estou descobrindo no ato de revisitar os registros dessa ocupação, quero deixar aqui meu obrigado. E não somente grato por termos sido seus alunos e posteriormente ter estado ao nosso lado nesse projeto, mas especialmente agradecido por nos encorajar a superar um dos nossos maiores temores: nomear as coisas.

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