Apolítico ou apartidário? Mas isso é possível?

Leo de Moura
6 min readJul 29, 2020

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E por que tentamos escapar da própria existência política

Close em mesa coberta por livros majoritariamente sobre ciências políticas e humanas. Grupo de três pessoas garimpam o livros
Na primeira feira grátis que promovemos, tivemos receio de expôr alguns livros, mas também sentimos que havia contradições nesse pensamento.

A máxima “nosso projeto não tem envolvimento político” foi repetida à exaustão durante os nove meses de ocupação. E houve um episódio curioso no meio disso: foi quando que ao repetirmos esse quase chavão, nosso antigo professor de geografia, que na época colaborou com muitas elucidações a respeito do projeto, reagiu imediatamente dizendo que nosso movimento era “totalmente político”. Uma frase que nos soou esquisita, estranha e até perigosa, mas que veio fazer sentido nas rodas de conversa anos depois.

Assim como as ciências nos ensinam, todos nós ocupamos um lugar no tempo e espaço, independentemente da nossa vontade. Da mesma forma, sabemos que dizer “ei, eu não faço parte disso! Sou um outsider” soa muito bacana e moderno, mas para a nossa profunda decepção, somente a força dessa declaração não transporta ninguém para qualquer caverna em Marte.

Se posicionando ou não, todos nós ocupamos um lugar no complexo emaranhando sociopolítico onde todo ser humano habita e, em função disso, estamos inseridos nessa malha social de alguma forma.

(In)consciência política, apolitismo e apartidarismo

Se dividirmos, grosseiramente, o apolitismo em dois grandes grupos, num primeiro o raciocínio segue partindo do conhecimento que algumas opiniões políticas são autoexcludentes, e ao expressá-las, muitas amizades seriam perdidas ao custo de uma penosa saturação mental — o que seria muito caro considerando que somos seres gregários e necessitamos nos sentir benquistos.

No segundo grande grupo, há as pessoas que irão usar a máscara apolítica para disseminar ideias antigas e bem conhecidas para qualquer bom estudioso das humanidades como algo inovador. Não surpreendentemente, essas pessoas usarão esse poder de argumentação para atrair gente do primeiro grupo de modo a formar uma massa de apoio para tomar iniciativas bastante políticas.

Já quando falamos de partidarismo, nos referimos à forma como agrupamos voluntariamente ideologias afins no intuito de tomar densidade suficiente para gerar força de representatividade dentro do nosso sistema alegadamente democrático. Então, quando dizemos que um sujeito é partidário, e temos a intenção de ofendê-lo ou não, dizemos que essa pessoa é aliada a um grupo (partido) cuja existência é assegurada pela Constituição e que representa alguma corrente ideológica possível.

Logo, é perfeitamente legítimo não se sentir representado por nenhum partido e se considerar apartidário. Porém, creio que declamar ser apolítico se limite ao campo meramente discursivo sem efeito prático sobre um distanciamento concreto do tecido social. Em outras palavras, tentar insistentemente se afastar da abordagem política não nos torna seres não-políticos.

Degraus de escada decorados por stencil com palavras como amor, cooperação, união educação, coletivo e gratidão.
Escadaria lateral da casa: uma bandeira e um lembrete para nós mesmos.

O fato é que falar de política assusta, é complicado, e pode parecer tão difícil quanto os campos mais obscuros da física. A diferença é que não vemos todos os dias no noticiário um novo escândalo entre pesquisadores de cinética, ou uma impiedosa discussão sobre eletromagnetismo no almoço de família que termina em barbárie. Porém, sabemos que isso ocorre quando discutimos política.

No mesmo ano de nascimento e vida do projeto, em 2013, o Brasil convulsionava com Lava-Jato, Impeachment, golpe, coxinha, mortadela, protestos e o prefácio do fenômeno de polarização que se intensificou até a data desse texto (2020). Por conta disso e do pavor das consequências de deixar que a menor faísca toque a pólvora do tabu sobre o tema político, evitávamos fazer qualquer menção que pudesse levar a uma discussão do gênero.

Conhecimento, informação e formadores de opinião

Creio que conhecimento pode ser um conjunto de experiências, estudos e reflexões vivenciado por uma pessoa ou coletivo. Opiniões podem ser contrárias, mas somos capazes de encontrar pontos de convergência nas suas estruturas, e nesse encontro, padrões podem revelar evidências que constituem hipóteses.

Já a informação é um aglomerado de dados tratados com o intuito de passar uma mensagem. Todo conhecimento e informação passará pelo filtro das nossas experiências sensoriais pessoais, então a imparcialidade talvez seja uma utopia a qual nunca conheceremos dentro da vivência humana. O que diverge é que enquanto o conhecimento se propõe a funcionar como um campo aberto de troca, a informação seja limitante a medida que não abre espaço para questionamento e reinterpretação, pois a informação tem a pretensão de trazer uma “verdade”.

Nos meios de comunicação em massa, vemos que alguns terão predileção por banhos de sangue e carnificina, outros gostarão mais de escândalos de corrupção, e alguns criarão um mundo encantador com muito entretenimento. De forma um tanto desonesta, as mídias parecem transmitir uma realidade artificial, tornando o campo entre conhecimento e informação embaçado, contribuindo para que o público “terceirize” sua capacidade de reflexão e atuem como meros consumidores. Sem espaço para reflexão, a construção subjetiva desses sujeitos-consumidores deixa de ser na experimentação do diferente, no estudo, no engajamento coletivo e da troca no debate, e em vez disso, se constrói a partir de um conglomerado comunicacional que envia informação de cima para baixo.

De forma alguma digo que o papel do jornalismo não é importante, ou que a mídia de massa não tenha sua participação em conquistas sociais marcantes. Mas todos nós também sabemos que o poder de influência na opinião pública que essas mídias possuem, dando mais ou menos ênfase a determinado assunto, perpetuam exclusões e processos estruturais violentos e, intencionalmente ou não, podem afetar a população de forma devastadora.

Close em mesa coberta por livros. Grupo de pessoas (adolescentes, jovens adultos e idosa) garimpam o livros.
Foto do 2º Café Cultural, com feira de livros, música ao vivo e lanches — tudo organizado colaborativamente.

De fato, com a chegada da internet, a imagem do livro vem perdendo seu espaço simbólico como “amuleto do conhecimento”, mas ainda assim há livros para todos os gostos, uns mais aprofundados, outros mais breves. Alguns promovem grandes reflexões, uns são mais utilitaristas e outros se propõem a garantir algumas horas de distração.

Assim como alguns campos da internet, o livro é imóvel e não fala, e temos em livros boa parte do conhecimento adquirido pela humanidade nos últimos milênios. Por outro lado, a televisão ou o jornal impresso são leituras contemporâneas e locais, são meros recortes de uma sociedade específica em um momento específico da nossa história — geralmente hoje.

A quem interessa?

Se na indústria da comunicação há pouca oportunidade para observar acontecimentos a partir de um lastro histórico amplo, o direito ao espaço no Brasil também é raramente debatido na mídia de massa. Isso traria questões que provocariam uma reflexão entre a desigualdade social a divisão de terras no território nacional, questões que passariam desde o saqueamento dos recursos naturais no Brasil Colônia e a distribuição de extensas massas de terra em capitanias entregues a um grupo muito pequeno de donatários até um movimento abolicionista meia-boca que deixou a população liberta ao deus-dará.

Falar de terras no Brasil também envolve falar de imóveis públicos e privados ociosos e o galopante processo de favelização que segrega e acentua ainda mais as diferenças sociais nas cidades. O que também envolve falar de pequenos agricultores e de terras indígenas, que não surpreendentemente, seriam o continente americano inteiro, ou Pindorama, ou Abya Yala.

Ter no imaginário popular que ocupar é o mesmo que invadir casa com gente morando dentro e botando todo mundo para fora, inclusive o cachorro, não é de agora. O vácuo deixado pelo afastamento do tema das terras, dá margem para qualquer espécie de interpretação por quem não se vê como peça estrutural disso. Não raramente, esse vácuo será preenchido por quem está interessado — e muito — no assunto, e obviamente, essa parcela de interessados não compõe o mesmo extrato social que o cidadão comum compõe.

Ocupação é um assunto político, mas não é a política comercial do jornal, mas sim uma política de contato, de troca e de emancipação. Construir-se como ser político vai muito mais além de estar por dentro do que acontece em Brasília. Construir-se como ser político tem muito mais que ver com a nossa subjetividade e nossa relação com quem nos cerca do que com um senhor de meia-idade discursando certezas em um palanque.

Longe de me colocar nesse lugar, mas acreditando que o leitor desse texto já carregue dentro de si essa predisposição antes mesmo de eu propôr qualquer coisa, sugiro humildemente que não veja o mundo apenas por uma janela. Abra outras janelas, explore livros de diferentes épocas, ou mesmo jornais de outros tempos, de outros países, aprenda línguas, converse mais — e de preferência com quem carrega uma história muito diferente da sua, aprenda sobre seu corpo, engaje em causas, deixe os outros falarem e escute com atenção. E se puder, saia da janela, abra a porta e vá correr lá fora.

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